Comunicação CAU/SC

Região leste do centro histórico de Florianópolis | Foto: Jaqueline Andrade

Daniela Sarmento*

Hoje quero refletir sobre essa frase do nosso querido arquiteto Sérgio Bernardes, que um dia disse – “antes de querer desenhar casas e cidades precisamos desenhar as ideias do mundo contemporâneo. Para quê casas e cidades se o homem não pode cumprir sua existência com plenitude?”.

Quando circulamos por nossa cidade e identificamos todas as demandas a que não conseguimos dar respostas, percebemos o tanto estamos presos em tentativas de resolver os fatores casuais e momentâneos, e o quanto isso nos impede a realização de ações mais abrangentes, capazes de conferir à sociedade uma vida onde a condição humana seja integralmente respeitada.

Sobre a abrangência da ciência do urbanismo “qualquer pretensão no campo do urbanismo obriga a tomar como ponto de partida essa visão panorâmica. Quando pretende-se apenas colocar remendos na paisagem, pode-se agravar os problemas, pensando em resolvê-los.”

Ele fala dos limites do tempo: o tempo de ação do poder governamental, o tempo de ação dos indivíduos, o tempo urgente das coisas defasadas, o tempo de fazer coisas novas, o tempo de mudança. Vivemos um descompasso de tempo.

Porém, o tempo passa e nos cabe dar respostas. Nem sempre o tempo do entendimento é o tempo da construção, e nesse descompasso a cidade se deteriora em seu estado de abandono.

Precisamos equalizar e vencer os “demônios” do nosso tempo – falta de diálogo, respeito, humanidade, conservadorismo, medo – que tornam o poder público cada vez mais impotente e os indivíduos com cada vez menos identidade. Só conseguiremos exorcizá-los se todos estiverem dispostos a um pacto pela reciclagem do pensamento. Isso significa, equalizar-se no tempo para buscar um novo desenho de si e para cidade.

É preciso, por exemplo, debater o uso da cidade para que não tenhamos casas vazias. Na lógica que vivemos hoje, a cidade gera resíduos, ambientes que não servem mais são abandonados ou destruídos. Esta lógica é totalmente insustentável. A cidade se constrói com alto impacto ambiental, utiliza-se de recursos que impactam o local da construção e de onde se extrai a matéria prima. É urgente divulgar que esses recursos são finitos e ressignificar os espaços para que eles saiam do modo abandonado para o modo otimizado.

Intervenções feitas em nosso centro histórico são estudadas de forma isoladas. Por mais que os estudos considerem todos os patrimônios da área, não se tem uma visão de conjunto, uma estratégia global. Não se percebe as possibilidades de conexões; não se considera as perspectivas históricas, não se prioriza o pedestre. Os olhos dos usuários estão cada vez mais distantes do espaço público.

Os argumentos para se intervir em nossa cidade não podem se resumir apenas ao entendimento do valor imobiliário definido pelos empreendedores. Precisamos saber o que queremos para a nossa cidade, construir critérios considerando o valor do uso do espaço e o valor de sua existência. O desafio está em traduzir e tornar visíveis esses valores para que preservar e ressignificar passe a ser evidências comuns e desejo de todos.

É um equívoco pensar a cidade apenas sob o ponto de vista jurídico e sob a lógica estrutural. É necessário um olhar mais sensível,  abrangente e responsável. Centros históricos tem um significado imaterial e temos que entender essa dimensão social e política do espaço; compreender que a perda de um edifício histórico é uma perda social e ambiental.

Cada um de nós guarda uma imagem da cidade. A partir da nossa vivência, construímos valores atrelados àquilo que consideramos importante, que nos ameaça ou nos deixa seguro. Cada cidadão tem um jeito de perceber a cidade, suas preferências, um canto, um recanto que guarda na memória. Essas impressões vão além do construído, pois o espaço ocupado é um agregador de vivências, histórias, sensações, encontros e memórias. Com isso, temos nas cidades sistemas complexos, conexões físicas simbólicas e subjetivas. Esse contexto nos faz olhar os centros históricos na perspectiva do seu valor comunitário. Isso precisa ser entendido como um ativo de valor, pelo que é singular e precioso, tornando os centros históricos áreas de oportunidade.

Precisamos ir além da necessidade de preservação, dar uso como resultado de uma cidade que se vê de uma forma integral  e cíclica. Os negócios imobiliários geridos até século XX não tinham uma perspectiva de finitude. Hoje temos informações concretas da finitude dos nossos recursos. Isso traz para o debate de preservação uma urgência que vai além da questão simbólica e cultural. Traz a urgência de ser uma alternativa de sustentabilidade para cidade contemporânea.

Interessante compreender e estimular a capacidade da regeneração dos espaços. Isso inclui o envolvimento consciente de toda a sociedade. A cidade é a expressão da nossa cultura e é imperativo refletir sobre os impactos da ideologia do novo. Diante disso, é  fundamental a construção do contraponto a partir do entendimento da responsabilidade ambiental, e atualizar as estratégias utilizando novos conceitos como o da economia circular, que nos ajuda a enxergar a cidade e seu patrimônio inserido em um fluxo criativo, diverso e integrado com outras economias.

Esse processo depende do ativo social, da capacidade de mobilização e entendimento de si mesmo. São ações de baixo pra cima que tendem a virar o jogo, a potencialidade de um arranjo de co-criação capaz de produzir respostas inclusivas. Pensar a diversidade econômica, a distribuição da responsabilidade, usufruir dos instrumentos urbanísticos e capturar, da valorização imobiliária, subsídios para promover a regeneração urbana.

Lançar o olhar para as coisas fixas da cidade e entendê-la, a partir do fluxo da nova economia, uma forma de buscar uma nova relação com patrimônio através de ações coletivas e significativas. Não é possível mais pautar o debate da preservação acreditando que apenas o proprietário sozinho vai dar conta de preservar seu patrimônio porque a urgência de se preservar extrapola a condição do direito privado. O meio ambiente, a cidade a paisagem são bens coletivos; então, a regeneração deve vir a partir de novos arranjos sociais, econômicos e jurídicos.

É preciso ressignificar nossos métodos, nossas narrativas e buscar um caminho de sensibilização e informação para deixar de ver o patrimônio como um castigo e compreender que ele é parte de um legado cultural, que gera impacto ambiental e que tem de ser regenerado e ressignificado por todos.

Não estamos sós, mas estamos distantes. A aproximação  dos profissionais de arquitetura do Sul do país no encontro da Comissão de Planejamento Urbano e Ambiental, em parceria com as CPUAS do CAU/BR e CAU/RS, CAU/PR e CAU/SC, assinala a intenção do Conselho de Arquitetura em abrir um diálogo com a sociedade, arquitetos e os gestores públicos para buscar soluções para os problemas complexos de nossas cidades – e, em recorte, os desafios do cenário de estagnação dos centros históricos. Estamos imbuídos da missão de construir alternativas e buscar uma estratégia de defesa e recuperação do patrimônio construído, que  promova a regeneração dos centros históricos com inclusão social, desenvolvimento econômico e equilíbrio ambiental.

 

*Presidente do CAU/SC

 

 

 

 


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