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Insurgente é “o indivíduo que se rebela”, segundo a definição clássica. Aplicado ao campo da Arquitetura e Urbanismo, o termo assume um significado mais amplo. A definição de “práticas espaciais insurgentes” foi discutida durante o “III Seminário Internacional de Planejamento Urbano: Participação e Insurgência”, em agosto. O evento foi promovido pelo Laboratório Cidade e Sociedade da Universidade Federal de Santa Catarina (LABCS/UFSC) em parceria com o CAU/SC. .:. Veja mais fotos do evento .:.

Pela amplitude do conceito, encaixam-se em práticas insurgentes tanto Planos Diretores Participativos, com os quais o CAU/SC colabora, até ocupações para fins habitacionais como a Contestado, em São José. Para discutir o tema com mais profundidade, o CAU/SC entrevistou a professora Giselle Tanaka, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Nesta entrevista, ela debate o papel dos conflitos sociais e dos arquitetos e urbanistas em ações colaborativas de participação popular.

 

CAU/SC – Como você define o conceito de atores e práticas insurgentes no contexto brasileiro?

Giselle Tanaka Insurgência pode ser definida de forma ampla, incluindo qualquer manifestação de caráter político em espaço público, desde revoltas populares espontâneas à ação organizada por movimentos sociais ou mesmo manifestações convocadas pelas redes sociais.

Neste debate, procuramos destacar aquelas práticas relacionadas à produção do espaço urbano, aquelas que tem relação com a luta pela terra ou mesmo pela permanência e uso da cidade por populações subalternas. Populações subalternas podem ser entendidas como aquelas destituídas de poder político e de recursos econômicos pela sua condição de classe, de raça e pelo lugar que ocupam na cidade. São populações que tem sua condição urbana desqualificada e por isso são estigmatizadas e criminalizadas, estando em constante insegurança quanto à posse de seu local de moradia.

O conflito social urbano, a ameaça de remoção ou a ameaça de perda de acesso à espaços urbanos essenciais às suas condições de reprodução da vida é entendido como fonte geradora de práticas coletivas, de formas de organização popular para a ação política. Essa organização é constitutiva de sujeitos políticos, que buscam meios de estar presente na cena pública para resistir, defender seus direitos ou mesmo reivindicar participar democraticamente da definição dos destinos da cidade.

 

III Seminário Internacional de Planejamento Urbano: Participação e Insurgência. Foto: Lívia Schumacher

Qual seria a função e a responsabilidade dos arquitetos e urbanistas neste processo que é, principalmente, popular?

O Brasil tem uma longa tradição de assessorias técnicas a movimentos sociais e organizações populares, que vem desde os anos 1960, pelo menos. São assessorias não apenas de arquitetos e urbanistas, mas também de advogados, assistentes sociais, geógrafos, entre outros. Embora não haja um caminho único, e as relações sejam definidas em cada contexto, há um movimento forte de arquitetos e urbanistas que se colocam nessa condição de assessoria técnica, garantindo o protagonismo de coletivos e lideranças populares.

O papel do arquiteto e urbanista, nesses casos, tem sido de disponibilizar ferramentas ao coletivo popular para conceber possibilidades de um futuro alternativo, seja de seu local de moradia, seja do espaço urbano que ocupa. A pesquisadora Faranak Miraftab trabalha com a ideia de “descolonização do futuro”, observando que o neoliberalismo vem impondo soluções únicas, em geral resultado de relações promiscuas entre agentes do mercado e o Estado, em que não há lugar para essas populações na cidade. O arquiteto e urbanista atua no sentido de pensar e propor, junto com populações organizadas, soluções técnicas viáveis para disputar possibilidades de construção democrática da cidade. É preciso disputar a cidade não apenas no plano da reivindicação de direitos, mas também no sentido simbólico, concebendo desenhos de futuros possíveis, sustentados por estudos técnicos que demonstrem sua viabilidade, contra essas supostas “soluções únicas”.

 

Como se encaixa o papel do Estado? 

O Estado tem atuado, cada vez mais, com o avanço do neoliberalismo e retração de políticas públicas, para garantir condições de maiores ganhos de agentes do mercado imobiliário na cidade. Inclusive, enquanto responsável por realizar investimentos urbanos, drenando recursos públicos para interesses privados.

Os marcos legais que definem as competências do Estado na política urbana, no entanto, na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade, principalmente, estabelecem a gestão democrática das cidades como princípio para a ação do Estado. Aos movimentos sociais e populações organizadas cabem, por meio da ação política, denunciar arbitrariedades na ação do Estado e reivindicar a construção de políticas públicas.

O Estado, na sociedade democrática, é um espaço em disputa. O Estado tem papel regulatório, no controle, na gestão e em investimentos urbanos. O Estado que detém também os meios de legitimar as ocupações urbanas chamadas de “informais”, garantindo a necessária segurança na posse da moradia para populações subalternas. A ação política pela justiça social na cidade, por isso, se dirige ao Estado.

 

Além dos exemplos citados em sua apresentação do Seminário, como o caso da Vila Autódromo no Rio de Janeiro, quais outras experiências brasileiras recentes poderiam ser mencionadas como práticas insurgentes?

São múltiplas as experiências de práticas insurgentes na luta contra as remoções no Brasil. No livro “Planejamento e Conflitos Urbanos: Experiências de Luta” (Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016), que organizei com outros autores, há exemplos importantes dessas experiências. Rapidamente, listando algumas: Comunidades dos Trilhos de Fortaleza; Horto Florestal, Rio de Janeiro; Arroio Pavuna, Rio de Janeiro; Vila da Paz, São Paulo; Saramandaia, Salvador; Comunidade Serviluz, Fortaleza; Dandara, Belo Horizonte Izidora, Belo Horizonte, entre outras.

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O “III Seminário de Planejamento Urbano: participação e insurgência” abriu com a palestra do Prof. Jean Michel Roux (IUGA/França) “Participação nos projetos urbanos na França”. Também participaram dos debates sobre Práticas Espaciais Insurgentes os professores Paulo Rizzo, Luís Felipe Cunha, Karina Leitão e Samuel Steiner dos Santos. O apoio ao evento está alinhado ao Plano de Gestão do CAU/SC, que pretende promover os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) da ONU. O Seminário, em especial, atende ao ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis (Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis), do qual o Conselho é apoiador oficial.

 

Texto e entrevista: Lívia Schumacher Corrêa
Edição: Ana Araujo

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